O hoje fadado a tornar-se passado ...

 

A Mercearia Zequinão existiu desde 1946 no que hoje é a Rua Fagundes Varela, no que hoje é o Bairro do Jardim Social. Usei o termos "no que é hoje" duas vezes porque a Fagundes era apenas um caminho de terra na região que era chamada de Planta Florestal. 

A Mercearia fechou na pandemia e em dezembro/2021 o Sr. Gabriel Zequinão faleceu, selando definitivamente o negócio que durou mais de 70 anos, iniciado por seu pai.

Passo constantemente pela Fagundes e primeiro veio uma faixa colocando a propriedade à venda (possivelmente incluindo a casa de madeira vizinha), depois vieram várias pichações, como mostra a foto feita hoje.

Certamente a edificação não é protegida e considerando a região bastante valorizada, creio que logo teremos apenas o terreno nessa esquina, apagando de vez uma longa história da paisagem do bairro.

Pensando nisso, lembrei de um texto maravilhoso que faz parte do meu livro "Saudade do Ninho", que numa parte diz o que segue:

"Construções são capazes de conduzir uma viagem para o passado e de encaixar e sobrepor o laminado de muitas histórias, ecos no presente. Quanto mais sobrevive ao tempo, mais conectada ao mundo uma construção se torna. Porque quanto mais dure no tempo, mais reitera as notícias trazidas por sua voz antiga e assim mais longe faz alcançar o abrigo um dia criado. Por mais que evanesçam as existências humanas reais que ali se depositaram, o território de uma casa convoca habitação, insiste, reticente, em fazer ponte com o tempo e o humano do agora. 

Quando uma mansão ou casa singela vão ao chão na cidade sem que disso se faça luto ou arte, parece haver a dificuldade de seus habitantes em encadear o sentido do hoje com o sentido do ontem. Considerando que o hoje, tempo no qual vivemos, está fadado a tornar-se passado, a fragilidade de conexão de nossas experiências com os sentidos que nos são oferecidos pelo que nos antecede torna a nossa própria realidade menos sólida – feito alvenaria úmida ou madeira oca. Feito virtual.

Se sempre estivemos certos de que nossa permanência física no tempo seria curta, a partir da descoberta de que cordas de fazer lastro com o passado são a cada dia mais difíceis de se estender, o alcance de tudo que construímos – e nossas casas aí se incluem – torna-se mais curto e os sentidos ainda mais frágeis. Frágeis como quando uma casa desaparece pelo apagamento porque não operamos uma reconstrução, mas uma demolição concreta [e simbólica]. 

Quando uma nova edificação se ergue sem produzir qualquer gancho com o que naquele espaço/terreno havia, perdemos a chance de demonstrar que a vida criada a partir do chão é, na verdade, um contínuo e que as fantasias mais íntimas projetadas em forma de construção madeira ou alvenaria são, ainda, um modo minimamente perene de representação. 

Uma cidade que quase chega às vias de se colocar abaixo no intervalo de poucas gerações não estará apressando demais o tempo de maturação capaz de permitir uma paulatina e verdadeira reconstrução de si? Uma reconstrução contínua naquele tempo formado de muitos dias, todos eles igualmente importantes?".

BARRICHELO, Andressa. De Madeirames e Concretudes. Saudade do Ninho, Curitiba, p. 64-66, mai/2016. 


Comentários

  1. Impossível não se emocionar com esta foto, com a história por trás dela e com a importante reflexão do livro mencionado aqui! Grata, Washington!

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