A história da casinha de madeira da Praça 29 de Março - parte 2



Ali, no quintal da casa da 29 de Março, cresceram brincando com os primos que moravam nos fundos. Eram ao todo oito crianças que dividiram a infância brincando de tudo quanto era permitido pela imaginação. O vô Zico (como era conhecido João Zarutski) fez um banco de madeira, o qual chamavam “bancão”; sentado nele o final das tardes assumiam o ar mais divertido que possa imaginar. O bancão era disputado por oito e as brincadeiras corriam soltas: passa anel, fita, objeto escondido, ônibus e tantas outras brincadeiras que eram inventadas na hora e outras que hoje já ficaram só nas lembranças.

O bancão, algumas vezes, era transformado em mesa e ali se faziam piqueniques improvisados. Da mesma forma passou várias vezes sendo o pique, na brincadeira de esconde-esconde que mobilizava até o cachorro da família, um pequinês marotinho que denunciava o esconderijo de um ou outro de vez em quando, pondo fim a uma das etapas da brincadeira.

Os jogos inventados quando não se desenvolviam no quintal, extrapolavam o muro, afinal a vida naquela época era tão mais tranquila a ponto da mãe, Beth, debruçando-se no muro clamava nome por nome, e ainda o primeiro e segundo nome, dos quatro filhos que brincavam na praça.

Os vizinhos todos conheciam a casa dos quatro filhos da Beth; os amigos eram fáceis de fazer e as visitas constantes. No quintal dificilmente contava-se menos de 13 crianças, entre os oito que ali moravam e mais os vizinhos. Ciro, marido de Beth, em determinada época, tornou-se mecânico de bicicletas, tornando o quintal ainda mais disputado pela piazada do bairro que buscava o alívio para as dores das magrelas. 

Quando o Vô Zico faleceu, em 1978, a casa ficou sob a responsabilidade do filho mais novo e solteiro, Cézar. Como era muito grande para uma única pessoa, nos anos 80 este abriu mão da casa para Beth, o marido Ciro e seus filhos. Ciro a reformou completamente para abrigar a família, e as principais mudanças incluíram a instalação de um chuveiro elétrico, sob a banheira de ferro fundido coberto por porcelana esmaltada (existente até hoje no banheiro), pintura nova dentro e fora da casa, reparos nos degraus da escada do sótão, troca das antigas janelas de madeira por vitros de ferro, troca de toda a fiação elétrica, limpeza na caixa d´água e revisão da parte hidráulica.

A reforma deu novo ânimo e vida à velha casa da 29 de Março. Beth era uma mulher dedicada fazia a casa sempre parecer um “brinco”, o assoalho brilhava, e tudo ficava no lugar. Alguns anos depois, Beth e o marido abriram as portas para o irmão mais novo, Cézar vir morar na velha casa e também para mais dois filhos de coração que igualmente, desfrutaram dos prazeres que o quintal oferecia para uma infância feliz. 

Em 2006 toda a família sofreu um revés que mudaria a história de todos, incluindo a casa. Beth, uma verdadeira matriarca, aquela que a todos ouvia, com um coração enorme, sempre disposta, dona de mãos de fada na cozinha, onde tudo que preparava tinha sabor especial, ficara doente. Em 2007, na véspera do Dia das Mães, faleceu, numa tarde de sábado, no quarto frontal e principal da casa da 29 de Março, rodeada pelos filhos e marido. 

Quatro meses depois, morria seu irmão mais novo, Cézar, na cozinha da casa, com a foto da irmã nas mãos, mais por saudades do que por problemas de saúde.

Deste ponto em diante, a família não haveria mais de encontrar um ponto comum de conexão, um equilíbrio saudável, nem mesmo a casa, que aos poucos perde o vigor, mesmo que o marido e o filho mais novo de Beth ali continuem morando.

Esta casa é muito mais do que somente sua representação arquitetônica, ela presenciou gerações, nascimentos, mortes, idas e vindas impostas pela vida de seus moradores; ela é fruto da fortaleza que aquela líder familiar exercia instintivamente e indelevelmente sobre seus familiares; é fruto da saudade e da perda causada; a casa agora espelha, sem discrição, suas feridas e cicatrizes que nos fazem lembrar de um tempo bom onde a casa era sinônimo de vida, e vida em abundância.

O futuro é incerto para esta casa que definha cada ano um pouco mais, afinal lá se vão mais de 90 anos...as doenças são certas com esta idade, a prevenção já não lhe cai bem.

Com a previsão pouco otimista para a casa no futuro vem à lembrança de que ela também presenciou o fim de várias outras casas vizinhas, e o surgimento de tantos outros arranha céus. Viu a velha Desembargador Motta de paralelepípedos dar lugar ao asfalto e o estacionamento junto ao meio fio, onde presenciou a parada de carroças inclusive, já nem existe, pois deu lugar à terceira pista para automóveis cada vez mais apressados passarem. O bairro antes distante tornou-se uma mistura contígua ao centro, a valorização e especulação imobiliária avançam a passos largos na região.

A sorte dos herdeiros da casa da 29 de Março é tê-la visto eternizada em aquarelas rápidas e cheias de emoções que fazem os desenhistas terem um apego emocional às suas produções como se fossem um antigo morador da casa.

Parabéns Urban Sketchers. 
Agradecemos o carinho e mesmo o apego.

Escrito por Hipólita Maria Zarutski de Paula Senem
Jornalista e designer gráfica, especialista em Comunicação Empresarial
Bisneta de Miguel, neta de João e filha de Elizabeth Zarutski

Comentários

  1. Bonita historia de tantas vidas. ¡Qué pena ver como se pierde una casa tan bonita!

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  2. Bonita historia de tantas vidas. ¡Qué pena ver como se pierde una casa tan bonita!

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